segunda-feira, 11 de maio de 2009

As Epifanias de um jovem escritor

Por Helder Bentes 04/05/2009 às 15h17 - http://www.orm.com.br/helderbentes/)

A palavra Epifania vem do latim epiphania e do grego epipháneia. Significa aparição ou manifestação divina. Pluralizada, a palavra nomeia o livro de contos do paraense Alfredo Garcia, escrito em parceria com seu filho H. G. Neto e que será lançado no segundo semestre deste ano, durante a Feira Pan-Amazônica do Livro, com o selo da também paraense Editora Paka-Tatu e prefácio de nada mais nada menos que Doutor Joel Cardoso, um dos maiores nomes do ensino da Literatura neste país.
Para fazer jus às Epifanias que o título da obra sugere, quero comentar e reproduzir um dos contos de H. G. Neto. Um conto dividido em partes que justificam o título '3 Extremos'.
Um personagem que, ao voltar do trabalho, assusta-se com uma possibilidade que, no mundo real, permeado por circunstâncias ordinárias, não assombra nem apavora. A narrativa vale pelo devir de uma surpresa que testa as expectativas do leitor. O caminho traçado por H. G. Neto daria muito trabalho ao pesquisador que se lançasse à aventura de desvendar os passos da imaginação de um leitor, na tentativa de preencher concretamente as lacunas deixadas ao longo do texto.
O outro extremo são as variáveis de enredo para três personagens: Tonho, Suzana e Carlos. Uma ampliação das possibilidades ficcionais, uma proposta de reflexão sobre as origens da literatura de ficção, um desafio às especulações possíveis entre as zonas limítrofes que separam a ficção da realidade.
Quando li esta 2ª história de 3 Extremos, pensei que esse limite pudesse ser a linguagem. Mas fui vencido por 'a mãe do menino parou de falar' e me lembrei de que o silêncio também é linguagem e, neste caso, fora o responsável pelos finais felizes das histórias inventadas. Lembrei-me também da profecia de Fernando Pessoa que agora se concretiza na carreira incipiente de H. G. Neto: 'O poeta [...] finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente'.
Talvez - eu disse TALVEZ - o cobertor azul desbotado da 3ª história seja o símbolo da infância perdida da personagem (E quem pode negar que uma infância perdida não seja uma dor real?) disfarçada na lembrança sugestiva do desenho do Pica-Pau.
Depois de ler este conto, não tive dúvidas de que seria um furo de crítica literária dedicar este post de 1º de maio a um autor que tem tudo para viver das letras, se outros trabalhadores (como nós) ensinarem seus filhos a apreciarem a boa leitura. Mas o que é boa leitura? Bem... Leiamos as histórias de 3 Extremos e o conceito de boa leitura fica para depois:

3 EXTREMOS

1. Ele chegou do trabalho debaixo de uma forte chuva, ensopado. Abriu a porta e chamou pela mulher. Estranhou ela não vir atendê-lo, mas aí lembrou-se: ela estava na cama, impossibilitada de fazer qualquer coisa. Foi para a cozinha servir-se de um drinque.
Estava bebericando um martini quando ouviu o ranger no andar de cima da casa. Aterrorizou-se: Mas como? A mulher estava na cama! A não ser que... A simples idéia o enchia de pavor. Esbaforido, largou o copo às pressas, deixando-o se estilhaçar no chão. Subiu correndo as escadas e chegou ofegante ao quarto onde estava sua mulher. Tremendo, ligou a luz e relaxou. Que susto tivera! Mas estava tudo bem: A mulher ainda estava morta na cama, o sangue agora já seco nos lençóis. Calmamente, o homem tirou a roupa ensopada e deitou-se ao lado da esposa.
2. “Tonho era um príncipe encantado que um dia conheceu Suzana, a princesa aprisionada no castelo do malvado barão Carlos. Depois de uma luta feroz, Tonho resgatou a princesa, e o Barão se arrependeu, e todos viveram felizes para sempre.”
Ou:
“Tonho era um espião que se apaixonou pela bela Suzana, uma garota em perigo nas garras do perigoso Carlos. Após muitas aventuras e perigos, Tonho salva Suzana e perdoa Carlos, arrependido dos crimes.”
Ou então:
“Tonho, garoto pobre, apaixona-se por Suzana, a filha do milionário Carlos, que o detesta. Após muitos desencontros, Tonho conquista o coração de Suzana e a confiança de Carlos.”
Essa última é a favorita do menino, mas ele gosta de todas, menos de uma que os adultos contam, em que o Seu Carlos, aquele senhor gordinho e risonho, mata o Tonho (o irmão do menino) e Suzana (filha do Seu Carlos), que chegavam de mansinho à casa dela. Tão de mansinho que seu Carlos pensou que fossem assaltantes e atirou.
Não. Dessa história o menino não gosta. Só gosta de histórias sem morte. Por isso, desde aquele dia em que a mãe do menino parou de falar, ele cria histórias com Seu Carlos, Tonho e Suzana. Todas elas com finais felizes.
3. Enquanto o padrasto entrava lentamente em seu quarto, a menina sentiu aquela coisa ruim que sempre sentia naqueles momentos. Teve, como sempre, vontade de chamar a mãe (ela estava bêbada), de gritar (ele bateria nela), de chorar (pra quê ?). Por fim, decidiu-se, como sempre, enquanto mãos grandes e sebosas retiravam seu cobertor azul desbotado: começou a lembrar-se de um desenho do Pica-Pau que vira pela manhã.