domingo, 4 de abril de 2010

APRESENTAÇÃO DE JOEL CARDOSO PARA "EPIFANIAS"

“Ler um livro é sempre botar o dedo no gatilho”
Julio Cortázar


Quando cheguei ao Pará, no início de 2002, travei conhecimento com a obra de Alfredo Garcia Bragança e, desde então, acompanho com interesse, carinho e um respeito (que ao longo do tempo só fez crescer) as trilhas da escritura desse artista sensível e criativo.
Natural de Bragança, tradicional e encantadora cidade do nordeste paraense, o autor alia à sua faina de escritor, de contista refinado, com muitos títulos significativos no currículo, as atividades de jornalista, radialista e de professor do ensino superior.
Alfredo Garcia é detentor de uma prosa originalíssima e o conto, sua praia, constitui-se indubitavelmente na sua marca caracterizadora, o seu ponto alto. As peculiares situações do cotidiano ganham, na pena do autor, uma dimensão que extrapola os convencionais limites do episódico ou do regional. Embora reconhecível, não é mais o regional que, ao lê-lo, visualizamos. Se a identificação local se mostra como possível evidência, a marca do universal, sobrepondo-se, reveste e transmuta o que seria meramente regional.
Já com uma longa, respeitável e reconhecida tradição, para além do imediatismo simplista proposto por Mário de Andrade, em ‘Contos e contistas’, capítulo singular do livro O empalhador de passarinho, de 1938, o conto não é, como quer o ícone do nosso Modernismo, simplesmente aquilo que o autor convencionou chamar de conto. É, com certeza, muito mais. Com identidade própria, a difícil arte da feitura de um conto pressupõe e, mais que isso, requer, além do poder de síntese na arte narrativa de captar o episódico, um domínio técnico que, se não alcançado, frustra o leitor. Artista é aquele que, de posse do episódio a ser narrado, consegue, através da sua, tocar a sensibilidade do leitor, levando-o a ver até mesmo o que já conhece com outro e novo olhar.
O conto, pelos aspectos formais, apontando para novas trilhas, novas dimensões e ensaiando procedimentos estéticos inusitados, transformou-se na modalidade literária que mais se amolda às exigências da contemporaneidade. O fato de ser um texto com delimitações próprias não faz com que abdique da sua complexidade enquanto gênero. Aliás, é aí que reside exatamente a sua especificidade: em sendo de curta dimensão, como em um soneto, sem, no entanto, se deixar prender às amarras desta forma poética, deve dar, a contento, o seu recado, e transmitir integral e convincentemente a sua mensagem.
Alfredo Garcia está na plenitude de seu mister artístico. Transita com maestria e segurança nos domínios do conto. Conduz com sedutora habilidade a narrativa, dando-lhe a dimensão exata, quando valoriza, na curta extensão requerida por esse gênero difícil, o efeito único. O seu discurso, num registro preciso, é sempre ágil, fluente e, o mais importante, vem eivado de lirismo.
Dos textos, verdadeiros poemas em prosa (‘Natureza’, por exemplo), emergem os meandros trágicos (e ao mesmo tempo líricos) do cotidiano (vide ‘Estilhaços do dia na mesa de jantar’). Profetas diagnosticam o por-vir (como em ‘Zefa): loucura poética na (in)coerência da (des)razão. Mesclando oralidade e a tradição discursiva, ‘Passional’ prescinde, em favor do estilo, dos sinais de pontuação (marcas da (pós-modernidade). Destinos anônimos e trôpegos, em se entrecruzando, bebem o mundo naqueles copos sujos, e nós, ao mesmo tempo que nos reconhecemos, paradoxalmente, nos estranhamos ante aqueles estranhos homens no bar. No contraponto entre o sonho e a realidade, a rotina converte-se amiúde em um entrave à quimera (‘Príncipe’). Rompendo o vidro baço do cotidiano, em ‘O troco’, mini-conto, o desfecho vem marcado pela imprevisibilidade cotidiana do previsível.
A originalidade dos recursos estilísticos (verdadeiros achados, impactantes pérolas metafóricas) confere um toque todo especial à prosa de Alfredo Garcia. Entre outros contos que poderíamos citar, merecem, com certeza, destaque, no conjunto, ‘A mulher mais linda do mundo’, ‘Ocorrência’ e ‘Perfeição’
O presente compêndio reúne dois autores: o veterano Alfredo Garcia, o pai, e o menino H. G. Neto, o filho.
Novos tempos, novos paradigmas, novos olhares sobre as mesmas velhas coisas, apontando novos rumos, novas percepções, novas formas de dizer, de expressar. É sempre gratificante ver o despontar de um escritor. Toda gênese traz em si mesma o mistério da criação. Mistério da descoberta. Mistérios do vir-a-ser. Escrever é uma arte tão prazerosa quanto ingrata. Quem escreve está sempre em um confessionário. Escrever é desnudar-se, é se mostrar, é se expor, é estar no limite de si mesmo (como diria Clarice). Um livro, uma vez terminado, como um filho, não mais pertence a quem o concebeu. Ganhando identidade própria, envereda pelas trilhas do mundo, cai nas malhas (por vezes inclementes) da crítica, abre caminhos e fendas jamais pressentidos.
Nos contos que compõem a segunda parte do livro percebemos um diapasão diferente (mas não menos interessante). Marcados talvez por um certo desencanto, que se quer pessimista, o ritmo dos fatos apreendidos nas águas do cotidiano espraiando-se na extensão dos textos, é outro.
Quero, para finalizar esta apresentação que se quer, sobretudo, despretensiosa, deixar o registro da minha satisfação pela oportunidade de, como o ourives, aguçar a minha percepção estética ante este mostruário textual, composto por jóias literárias extraídas dos cascalhos do cotidiano de que sobrevive o conto. Como jóias, os textos tão bem refletem, no infinito universo da arte da palavra, os percursos e projetos promissores dos artistas que os criaram; refletem, ainda, as inquietações humanas (demasiadamente humanas) que oscilam entre o ameno e o inquietante, entre a realidade e a fantasia, entre o mestre e o aluno. Estes contos, estilhaços do gatilho disparado, afirmo, valem ouro. Quem os ler verá!

Joel Cardoso
Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2001)

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